Hoje há mais de mil concessões para veiculação de TVs educativas no Brasil. E o poder de influência televisiva na educação é particularmente forte no país. As novelas são exemplos. Elas arrebanham multidões e funcionam como representação cultural do Brasil no exterior. Mas elas não incitam a reflexão, a crítica ou o questionamento. Então, quais os caminhos à realização de conteúdo audiovisual para TV e para web?

Essa pergunta é o tema da mesa de abertura do seminário “E por Falar em Cinema…”, que começou nesta segunda-feira e segue até quarta-feira no auditório do Sesc Cidade Alta. Um dos debatedores é o Diretor-Executivo da SescTV, Valter Vicente Sales.

Na entrevista a seguir, ele comenta a falta de critérios de concessão para Tvs educativas no Brasil, a nova forma de produção de cinema voltada à programação televisiva, o poder das novelas, padrões estéticos para conteúdo de TV, influência hollywoodiana no cinema, o avanço das TVs por assinatura e da queda de audiência crescente decorrente do novo público da internet, e o tempo que a televisão deveria ter.

Quais os caminhos para realização de conteúdo para TV e web?

Uma das pautas da mesa é o atual momento da televisão no Brasil, que está sendo muito impulsionada pela lei 12.485/2011, que prevê exibição obrigatória de produções independentes na programação. A televisão fechada sempre teve essa tradição, mas a TV aberta sempre produziu seus próprios conteúdos. Agora essa tendência tem se invertido. Dessa forma está se abrindo mais espaço ao produtor independente, que não é vinculado diretamente aos canais de televisão.

Pode-se afirmar que a programação da TV aberta é mais voltada à grande massa e a TV paga para um público mais exigente?

Isso mudou. Até 5 anos atrás se tinha uma TV paga restrita a quem podia pagar, e seu principal público era a classe A e B. Nos últimos 5 anos a adesão à TV por assinatura disparou e começou a avançar sobre as classes C, D e E. O público majoritário, em torno de 40%, ainda é o A e B, mas tem regredido. A TV por assinatura no Brasil começou no meio dos anos 90, com 4 ou 5 milhões de assinantes, estagnou por aí e, recentemente, voltou a crescer e de forma vertiginosa. Hoje ela chega a 17 milhões de assinantes. Se você pega a média de três telespectadores por assinatura, já se tem mais de 50 milhões de pessoas com acesso à TV por assinatura. É um percentual ainda pequeno, mas em franco crescimento.

Qual o percentual de TVs educativas no Brasil?

Se pensarmos em termos de TV aberta existe um problema. Há um tipo de concessão para TV comercial e outro para TV educativa. Mas isso tem sido feito sem muito critério. Então, muitas instituições e empresas criam fundações para ter facilidade em adquirir essa concessão de TV educativa, mas sem operar como. Parece que hoje, no Brasil, tem mais de mil concessões para TV educativa em TV aberta.

Não se vê esse número.

É porque se tem a TV pública, a TV comercial e a TV educativa. A educativa não é exatamente a TV pública. Pode ser vinculada a uma fundação, inclusive privada.

Qual sua formação e como você chegou à direção executiva do SescTV?

Tenho formação na área de comunicação, publicidade e propaganda, cinema e televisão. Sou funcionário do Sesc há quase 30 anos. A TV se originou pela TV Senac, criada em 1998, com o objetivo da formação profissional na área de comércios e serviços, mas sem didatismos. Era uma TV segmentada, característica própria da TV por assinatura. Pouco a pouco a TV Senac introduziu a programação cultural do Sesc: espetáculos musicais, de dança, etc. E a programação foi se invertendo. Em 2006, o Senac preferiu investir na educação à distância, desistiu da TV, que à época se chama STV Rede Sesc/Senac de Televisão, que se transformou em SescTV. E nesse processo, saí da área de gerência educativa de programas do Sesc e assumi a direção executiva da televisão.

Como você insere o audiovisual na programação do SescTV? A terceirização é mais viável?

Sim, toda a produção é terceirizada. Trabalhamos com produtoras independentes. Isso tem uma razão econômica, evidentemente, porque é uma estratégia profissional quanto a custos, mas também uma razão cultural. Quando convidamos uma produtora a trabalhar com a gente, é porque ela domina determinada linguagem que queremos trabalhar.

Quanto à inserção de longas-metragens. Há dificuldade em adaptar ao formato da TV?

As produtoras têm produzido tanto para cinema quanto para televisão. Quando se falava em cinema, décadas atrás, você tinha filme feito para cinema e, depois de alguns anos, era exibido na TV aberta. Hoje já temos filmes produzidos especialmente pra televisão, com a lógica do formato da televisão.

São formatos distintos…

Sim, isso altera a concepção artística. No cinema há certa linha dramática onde o telespectador é cativado, seduzido aos poucos. Na TV aberta é a questão do ser fisgado logo nos primeiros instantes do filme. Isso altera tempo de roteiro, inclusive para os cortes de intervalos. Então as grandes produtoras já têm mercado aberto tanto para cinema quanto para televisão.

Essa adaptação ao formato da TV ajuda ou atrapalha a produção cinematográfica? É um dilema entre divulgação x qualidade?

Uma observação para o caso brasileiro nesta questão é a influência enorme da televisão. Os filmes de maior sucesso são os que há atores de TV. Podemos dizer, então, que nosso cinema cresce como filho da televisão. De alguma forma é prejudicial por que se tem uma estética da televisão no cinema. Por outro lado temos o cinema brasileiro sempre produzindo.

O cinema brasileiro também sofre forte influência hollywoodiana?

Sofre. O formato do padrão mundial de cinema é norte-americano. Se olharmos a crítica do nosso cinema, nos anos 60 e 70, se falava ainda de uma cinematografia nacional; uma tentativa de se livrar dos padrões; de criar uma linguagem própria. Esse debate desapareceu. Hoje, quando se faz um filme não dá mais para falar de um filme feito no Brasil por que há um padrão estético mundial e o cinema industrial adota esse padrão. Claro, existem exceções.

Algum diretor brasileiro que procura fugir dessa estética padronizada e universal?

Karim Ainouz, Marcelo Gomes. Temos um cinema em Pernambuco surgindo com força. Temos o filme Som ao Redor, indicado brasileiro ao Oscar. Temos algo diferente surgindo aí.

O papel da TV educativa rema contra a maré na tentativa de educar?

Toda TV, de alguma forma, exerce alguma influência. Não talvez o conceito clássico de educação. Mas a televisão é o veículo de comunicação com maior responsabilidade pela força que tem. Veja: mesmo em lugares sem equipamento social há televisão. A TV educativa, segundo o princípio da própria legislação, não se reserva propriamente aos conteúdos didáticos, que se transforma em telecurso ou que procura induzir à sistemática da escola na sua programação. A TV educativa é aquela que segue as diretrizes de uma ação cultural. Ela provoca no telespectador a sua capacidade de reflexão, de crítica; provoca o seu interesse, o seu conhecimento da comunidade ou seu autoconhecimento.

A novela é fortíssima no Brasil. E está inserida no bojo da teledramaturgia, sendo quase um estereótipo. A novela poderia ter um viés mais educativo ou formador de plateia para o audiovisual?

A novela sem dúvida é o principal produto da televisão. Mas não sei se cabe uma postura funcionalista e tentar transformar a novela em uma ação educativa ou cultural. Acho que ela já é representante de nossa cultura, inclusive no exterior. O que vemos na novela são os desejos de certa camada social brasileira; seus sonhos, suas fábulas, seus ideais, estão ali presentes. Talvez ela não faça é colocar no telespectador a capacidade de crítica diante disso. As coisas são colocadas tais como elas são. A novela acaba sendo um espelho da realidade, mas sem questionar essa realidade.

Quais os programas de maior audiência do SescTV?

Temos grande procura pelos programas de música. Interessante é que não importa o gênero. Procuramos a diversidade, além de trazer o que não existe em outros espaços. O que você vê em outro canal você não vê no nosso. E não é questão de exclusividade ou de mercado, mas de ceder espaço a quem não tem, desde que, claro, tenha relevância cultural. E temos desde concertos de violão, que dão muita audiência, a shows com os Racionais (hip hop), por exemplo. São os que mais têm acesso, na programação.

A faixa etária do público da TV tem sido cada vez mais avançada por que os jovens têm migrado para a internet. Isso preocupa?

Sim, mas eu acho um caminho sem retorno e não podemos ter uma visão fatalista a respeito. Sempre houve tecnologia nova. Já se falou no fim do cinema, da televisão, do rádio. Agora, sem dúvida a internet tem formado um novo público. Em um primeiro momento temos esse público caracterizado pela população jovem. Mas já há pesquisas que comprovam que isso também tem avançado para o público mais tradicional – aquele criado assistindo a TV aberta. Acho que o principal significado disso é que o telespectador ou o internauta vai montar sua própria programação. A programação linear da televisão tende a perder audiência.

De forma geral a televisão já tem perdido audiência?

Décadas atrás programas batiam 80% de audiência. Hoje, quando atingem 30% já fazem festa.

A novela Roque Santeiro conseguiu mais de 80%, salvo engano.

Selva de Pedra conseguiu 100%. Mas essa queda vista hoje é positiva. Mostra que as pessoas estão ligadas em diversidade.

Além da internet, o próprio crescimento das assinaturas da TV paga também contribui?

Sim. Mas veja: muitas pessoas ainda assinam a TV paga para ver a TV aberta com melhor qualidade de imagem. É como se pagasse uma antena. Os canais mais vistos da TV paga são os da TV aberta. Mas esse cenário está se alterando.

Há uma fórmula discutida para atrair esse novo público da internet; de repente uma TV mais interativa?

O ponto de vista é: como as pessoas têm consumido a linguagem do audiovisual. Você tem de estar atento às propostas de linguagem artística. Hoje as pessoas consomem várias coisas ao mesmo tempo: assiste à TV com um smartphone ao lado, um tablet. E você tem de considerar essas tendências, ou seja: uma produção cinematográfica com seus 90 minutos, por exemplo. Por outro lado – e isso é uma perspectiva interessante quando falamos em plataformas – os formandos nesse segmento já têm essa preocupação de produzir algo para a televisão ou o cinema pensando na internet, no videogame.

Enquanto mídia educativa, qual tipo de restrição à violência e ao sexo, por exemplo, você impõe ao audiovisual?

Temos padrões éticos. A violência é relativa. Podemos ter uma cena extremamente violenta, mas dentro de um contexto cultural do filme que justifique, ou uma violência simplesmente apelativa, sensacionalista e está lá para trazer o que você tem de menos nobre, menos humano e isso se torna uma audiência barata. Do mesmo jeito para a questão do sexo. Há contextos absolutamente artísticos, mesmo no sexo explícito, ou o sexo meramente exploratório. Enfim, precisamos saber se há uma exploração comercial ou se há um significado cultural. Mas existe hoje uma regulação muito interessante no Brasil, em que a TV fornece indicações do conteúdo que ele vai assistir. E o telespectador tem condições, tanto na TV aberta digital quanto na TV por assinatura, se informar sobre o conteúdo que será exibido.

De que forma o conteúdo do SescTV é montado?

Ela tem uma forma de trabalho peculiar. Somos uma TV sem câmeras. Tem gerências especializadas em diversas áreas: teatro, cinema. Ou seja: uma equipe para analisar como essas manifestações da arte podem estar a serviço da missão educativa do Sesc. Além de uma equipe própria que faz a ponte entre o que desejamos em termos de conteúdo e o contato com as produtoras. Tudo o que as produtoras fazem é acompanhado por essa equipe, no sentido de manter uma linha editorial, uma proposta educativa. A produtora muitas vezes tem uma perspectiva de mercado, do senso comum. Por exemplo, a terceira idade. O Sesc trabalha ou tem conhecimento acumulado com esse segmento desde 1964. Então, para a produtora produzir um programa sobre esse tema precisa estar sintonizada com esse conhecimento.

Isso em todas as áreas?

Sim. Por exemplo, o Sesc não exibe dança clássica. Temos esse conceito porque acreditamos que a dança contemporânea ultrapassa muito mais os limites do corpo. A dança clássica, não obstante sua beleza, sua harmonia, é feita por padrões; o corpo se amolda à dança. Na dança contemporânea, de alguma forma, você tem essa proposta invertida. A nossa forma é mais a de afrontar do que trabalhar com padrões.

É um conceito para além da dança, então.

Queremos programação feita com estética diferenciada. Se você fala sobre cultura popular, o assunto em si já é importante, mas a forma com que se exibe isso na televisão também é. Uma narrativa que cede espaço ao telespectador opinar; uma narrativa que não seja assertiva ou conclusiva, mas que abra espaço para dúvidas, questionamentos do telespectador.

Um olhar diferente.

Uma TV de qualidade é educativa também não só pelo conteúdo, mas porque ela traz uma forma de olhar diferente. O audiovisual faz isso. A gente exibe poesia no intervalo, videoarte; pílulas de imagens que duram três minutos sem nenhum corte, para mera contemplação. É um tempo que a televisão não tem. A televisão tenta lhe fisgar o tempo todo. E a gente tenta afrontar essa expectativa. No SescTV, o telespectador pode assistir a imagem de uma árvore durante três minutos só com o som do vento.

A TV aberta tem quase o ritmo da sociedade urbana, então, movida pela pressa e pelo mercado?

Um telefilme, se ele não esquentar em cinco minutos, você muda de canal. Muitas vezes o filme já começa pelo fim: mostra o assassinato para despertar a curiosidade de quem é o assassino. As primeiras partes do filme são sempre as mais longas. É o tempo para lhe fisgar. Depois começam os comerciais. O cinema não tem isso.

O tempo do Sesc TV é mais esse tempo do cinema?

O tempo do SescTV é mais o tempo da vida.

O tempo que a vida deveria ter, então.

(risos) É. O tempo do questionamento, da reflexão, da dúvida.